Rating: | ★★★★★ |
Category: | Books |
Genre: | Literature & Fiction |
Author: | Adair Carvalhais Jr. |
Pergunto-me o que mais me cativou na poesia de Adair. Não há respostas fáceis para essa questão. Talvez, primeiramente, por oferecer a ilusão de que o poema “nasceu pronto”, fato que a leitura mais atenta logo desmente: a poética de Adair é habilmente burilada, poética-processo onde texto e autor vão se amalgamando e, dessa “massa” revelam-se as palavras feitas de carne, a carne do poeta: “meu corpo bate/ e volta contra as arestas do/ dia escurece e viver me/ devolve apenas restos/ gastos boiando em meus/ olhos.” Por emprestar-se ao poema, Adair constata: “não me encontro por/ inteiro partes/ desencontradas” ou: “quem é você afinal que/ me rouba assim/ de mim eu/ sei você sabe o resto/ fica/ com o universo”
Esse eu-poético fragmentado, inteiro em partes, faz incisões precisas nas palavras, nos versos, mergulhando o leitor nos abismos líquidos da sua poesia: “à noite dorme/ na liquidez do meu/ olhar os peixes/ pálidos/ de solidão” Assim, chegamos ao outro motivo pelo qual me deixei enredar: a poesia de Adair é plena de correntezas: “mergulhei nas/ correntezas de seu/ desejo esta/ noite”; mares de dentro: “minhas ondas vão/ e vêm”; lágrimas: “mas queria algo tão eterno/ quanto as lágrimas que emanam/ dos meus olhos e se evaporam/ nas minhas mãos”. Os versos criam cenários líquidos lançando mão de suores, poços e chuvas, de tal forma que, na poesia de Adair até a poeira ganha o dom de inundar: “dá-me bom/ dia a poeira/.../ exausto de limpá-la deixo-a/ inundar meus cantos/.../arrastar-me/ enfim”
A qualidade líquida, e, portanto envolvente, da poesia de Adair, se revela ainda na ausência de pontuação; a maioria dos poemas se entrega a todas as possibilidades: não aceita os limites impostos pelos pontos finais, não quer a pausa das vírgulas, não interroga, não pasma, apenas, delicadamente constata: “mas eu te quis como/ o peixe busca redes” A delicadeza surge no emprego inteligente das minúsculas, que, aliado ao uso parcimonioso da pontuação, reforça a metáfora das palavras flutuantes.
Em “desencontrados ventos” relemos nossa mais palpável solidão. Não sei, não sei, mas haverá solidão mais concreta do que a cantada nesses versos? “Houve um tempo/ em que minha única companhia/ era o silêncio do mato/ crescendo/ no lote vago.” Uma solidão que possui o poeta e que ele possui, ciumentamente: “minha dor posso/ dividir minhas lágrimas derramar/ nas suas mãos mas esta/ solidão é toda/ minha”. A solidão é “toda” traduzida na ânsia de vivenciá-la, mais do que descrevê-la, na permissão para que ela o “arrombe de vertigens”, levando-o à catarse final - o verso: “enlouquecido por tua/ ausência solto aos ventos/ intempestivos sou carne pura aos pés/ da noite”
Não posso definir o que me cativou na poesia de Adair carvalhais Jr. além do poder de cinzelar a palavra-prima - a pedra, e esculpir nela o que lá já estava, mas, ninguém mais viu.
Sandra R. S. Baldessin
desencontrados ventos (2002). Editora Outras Letras