sábado, 27 de novembro de 2004

Poema para esperar dezembro


DEZEMBRO

A carne de dezembro tem
cheiro de menina-moça:
concentra-se no ar,
Intoxicante, inebriante, recendendo
à fruta temporã.
Dezembro possui a cor fugaz
dos desejos de verão:
transitórios, efêmeros, matizando
a atmosfera circundante.
Não fala dezembro, cicia
com voz de amante, rumoreja
como os rios, o vento, a criança
no berço, a velha rezando o terço.
Dezembro recicla em sua usina
trezentos e sessenta e cinco dias,
intercepta a rotina, o tédio,
disseminando ao seu redor
o incenso da esperança.


Sandra R. S. Baldessin

Foto: Amante do Sol - Maresias/SP - setembro/2004


domingo, 14 de novembro de 2004

Maxine *


Escreve o meu nome direito, vai. É Ma xi ne, deixa ver se escreveu certinho, isso, Maxine. Pra falar tem que ser assim: mac cine. O sobrenome não tem que escrever, não. É da silva, as minina aqui da rua é quase tudo da silva, tem lorraine, michele, suellen, mas se for ver no registro do cartório é tudo maria aparecida. Eu não. Olhaí meu RG, viu? É Maxine.
Minha mãe, coitada, que casou virgem, deu pra filha menor o nome da puta de um filme que ela gostou, coitada, ficou com pena. De mim não tinha pena, se soubesse que eu caí na vida, minha mãe, coitada. Teve treze filhos: tudo jão, zé, Cida, tudo do Silva, o Silva que levou de brinde o cabacinho dela, além de conseguir alguém pra lavar suas cuecas de graça. Empregada, costureira e o que mais ele precisasse.
Viu que esse nome serviu de alguma coisa, não precisei inventar outro na hora de entrar na profissão. Mãezinha acertou no nome, acertou na receita também, que você pode olhar bem, não vai ver outra gostosa como eu por aqui, não. É mistura de italiano com caboclo, que minha mãe, coitada, era filha de caboclo e meu pai veio de gente italiana e portuguesa; italiana era minha avó Adolorata. Essa sabia odiar! Odiava mãezinha que enfeitiçou o filho querido dela com seu cheiro de terra molhada.
Foi dela que me vieram esses olhos clarinhos. A cintura fina e as coxas grossas vieram de mãezinha, coitada. O olhar não faz diferença na carreira de puta, mas as coxas, essas ajudam. Já o vô, Joaquim da Silva, gostava de nós tudo, mas não mandava nada, que o pouco dinheiro que tinha era dela, da nonna. Nonna dos outros netos, pra ela a gente fedia, era tudo vira-lata, cria de cachorro de raça com cadela de rua, mas minha mãe, coitada, casou virgem.
Não pense que estou na vida por falta de opção, como se diz por aí; eu tenho segundo grau, podia ser balconista, auxiliar de alguma coisa, podia. Podia até casar com um sujeito que depois de uns anos ia virar bêbado que nem meu pai e acabava me comendo no escuro e de graça. Isso é que não.
Tá sentindo meu perfume? Acha que balconista podia andar por aí com cheiro de mulher francesa? E depois, meu destino veio selado nesse nome: Maxine. No começo foi duro, pode escrever aí, eu tinha 18 anos e acreditava no amor. Achava que amar era quando a calcinha ficava molhada toda vez que o Nelson, filho da freguesa de roupa lavada da minha mãe, me abraçava e enfiava a língua na minha boca.
Tesão, só tenho por dinheiro. O sujeito pode ser velho, novo, barrigudo, careca, pode feder, pode me pedir a coisa mais estranha, e pode crer que pedem. Pagou, leva. Lembro da mãe, coitada, dizendo que a Maxine do filme falou para o galã: Eu não faço amor, faço dinheiro. Ela achava romântico isso, porque era mentira, porque a tal Maxine tava apaixonada pelo cara.
Mas, não essa Maxine, que assistiu de camarote as porradas que a mãezinha levava; culpada, culpada de ter acreditado no amor. Mas ela tá morta, que descanse em paz, coitada. E a avó Adolorata continua viva, que força não tem o ódio, me diz? O senhor tem certeza que o programa, a reportagem passa lá no interior de São Paulo também? Porque eu quero que ela veja a vira-lata na televisão. Vai, filma bem as minhas coxas e a minha cara lavada, que eu tirei a maquiagem pra ela me reconhecer, ela gosta desses programas de repórter.
O melhor homem que tive até hoje, e já tô na rua faz uns 15 anos, foi uma mulher. Eu vivi com ela uns tempos, dava aula na universidade e tinha dois filhos, tudo homem feito. O único homem que me amou e cuidou de mim. Quer saber como eu fiquei sabendo que ela tava morta? Num jornal velho, jornal de embrulhar verdura na feira, jornal do mês retrasado. Eu pensei que ela tivesse me abandonado, mas mataram ela num assalto. Foi quando eu descobri que ainda não desaprendi de vez a amar...
Não tenho mais nada pra contar, a não ser o dinheiro que o senhor vai me pagar pela entrevista, ou tá pensando que vou mostrar minha cara na televisão de graça?

Sandra R. S. Baldessin


* Este conto integra a coletânea "Todas elas" - inédita.
** Fotografia de quadro do artista Toulouse Lautrec; captada em: www.hstech.org/.../ setdsn/museum/met_photos.htm